Mai 5, 2022

Dia Mundial da Língua Portuguesa


A propósito do Dia Mundia da Língua Portuguesa, 5 de Maio de 2022

 

“5 de Maio

Andava eu buscando no dicionário de José Pedro Machado informação sobre uma certa palavra, quando, do fundo da memória, aparentemente sem motivo, me surgiu uma outra, e com ela uma frase inteira, não ouvida desde há muitos anos — «alanzoar», «que estás tu aí a alanzoar?» —, que minha mãe me dizia nas vezes que me ouvia protestar contra uma ordem sua, ou quando, posto de castigo, me desforrava resmungando baixinho contra a desaforada autoridade materna. Nem então, nem depois, fui procurar no dicionário o significado do termo. Mas hoje, quando as palavras portuguesas — talvez por estar vivendo tão fora delas, nesta ilha de Lanzarote — me aparecem como se acabassem de ser criadas no mesmo instante em que as leio, ou as digo, ou as evoco, deixei a palavra de que precisava para o meu trabalho e fui-me a satisfazer a curiosidade: saber, de segura ciência, que «alanzoar» era aquele que eu, menino e moço empiricamente andava praticando. Encontrei «tagarelar, falar muito, falar com bazófia, mentir, resmungar, murmurar da vida alheia, pregar moral, repreender, ralhar, impor normas morais, rosnar entredentes, murmurar, falar baixo criticando» — o suficiente para descobrir, depois de tantos anos, que minha mãe, apesar de analfabeta, sabia muito de língua portuguesa... Depois, pondo-me a pensar, achei, por causa daquele «falar com bazófia», que talvez «alanzoar» não fosse mais do que uma corruptela de «alardear», palavra trabalhosa de dizer, com esse volteio de língua demasiado difícil para o povo simples de Azinhaga. Não era: «alardear» vem de «alarde», e «alarde» (tudo isto são sabedorias de José Pedro Machado, não minhas) vem do árabe «al+ardh». Apesar do revés, perseverei e fui-me ao Dicionário Etimológico do mesmo Machado, com a tranquila certeza de que iria encontrar, desenrolada e explicada, nesse próprio lugar, a genealogia do intrigante vocábulo. Pois não encontrei, não senhor. O que o Etimológico diz, com desarmante laconismo, é o seguinte: «Alanzoar, v. De alão, raça de cães.» Afinal, seriam os meus protestos e resmungos, aos ouvidos de minha mãe, apenas como aquele monótono, contínuo e obsessivo ladrar que realmente nos daria vontade de dizer: «Que estás tu, cão, para aí a alanzoar?» Pode ser. O pior é que lá na aldeia, do tempo em que nela vivi, não recordo rasto, sombra ou lembrança de um só alão que fosse, essa espécie de cão de fila dos pesados, de molosso doutras geografias. Na Azinhaga, e já é fazer-lhe favor, o que havia era uns perdigueiros sem casta, uns sabujos sem faro, uns rafeiros sem porte — todos eles muito competentes de alanzoar, sem dúvida, mas não tanto nem tão bem que pudessem ter dado o nome à palavra.”

 

In Saramago, José (1994) Cadernos de Lanzarote: Diário I – Editorial Caminho